Disparidades genéticas despertam ímpetos de acasalamento nos animais. Essa atração pela diversidade está claramente demonstrada na escala zoológica e vale para seres tão diversos como o ouriço do mar, ratos e homens.
Sob a perspectiva evolucionista, a afirmação acima obedece à lógica: quanto maior a identidade genética entre os pais, menor chance de sobreviver terão os filhos. Todos sabem que um vira-lata é mais resistente do que cachorro de madame, e a história está repleta de famílias extintas pela consanguinidade.
No instante em que a cabeça do espermatozoide penetra o núcleo do óvulo, os genes paternos são projetados na direção dos genes maternos. Óvulos e espermatozoides carregam apenas a metade dos genes necessários para gerar um novo organismo. Por isso, são células incapazes de se dividir sozinhas e multiplicar a vida; só através da união conseguem fazê-lo.
O espermatozoide traz na cabeça o repertório genético do pai representado integralmente: uma cópia de cada gene. Da cor dos olhos à forma da molécula de insulina que o pâncreas fabrica e ao jeito de olhar quando fica bravo, todas as informações sobre o corpo dele estão ali. No óvulo, a mesma coisa: todas as informações a respeito da mãe. No núcleo do óvulo, genes maternos e paternos se fundem no momento da concepção para formar pares organizados: cor de olho de um com a do outro, insulina com insulina, e cara de cada um quando fica bravo. Dessa forma, cada gene é formado por duas cópias: uma herdada do pai, outra da mãe. Para os genes, também são necessários dois para dançar um tango.
Enganam-se, entretanto, os que sonham com uma união de amor nesse momento. Genes são substâncias que interagem e reagem quimicamente com outras. Além disso, genes são estruturas nada altruístas (como deixou claro Richard Dawkins, biólogo-evolucionista de Oxford, em seu livro “O gene egoísta”): os do pai querem se impor aos da mãe, e os dela, aos dele. Na formação do par de genes, um vai agir de forma dominante em relação ao outro. Por exemplo, gene para olho castanho é dominante sobre o olho azul; quando ambos se encontram, o castanho prevalece. A dominância impõe a característica do progenitor.
Os genes que chegaram até nós foram transmitidos de um antepassado para outro por milhões de anos de evolução. Não foi às custas de gentilezas com os genes alheios que eles sobreviveram. A fertilização deflagra uma guerra química entre os genes na disputa de representação dominante no futuro organismo. Ganham os mais aptos, sejam bons ou maus. Serão considerados bons aqueles que contribuírem para assegurar a sobrevivência até a idade reprodutiva; os que não servirem a esses propósitos estarão extintos já na geração seguinte.
Indivíduos geneticamente muito diferentes levam vantagem ao combinar e recombinar informações genéticas, porque as diferenças diminuem a possibilidade de um gene defeituoso do pai formar um par com outro, portador de defeito semelhante. Assim, no decorrer das gerações, a seleção natural privilegiou a diversidade e puniu com a extinção milhões de genes consanguíneos, deletérios.
Nos organismos complexos, a luta pela vida é, sobretudo, dependente da integridade do sistema imunológico. O corpo resiste a inúmeros defeitos, mas não à falta de imunidade. Tal dependência favoreceu a predominância dos filhos de pais com grande disparidade nos genes que controlam as mil e uma atividades do sistema imunitário. Num mundo habitado por parasitas, bactérias e vírus mortais, e por inimigos internos como as células malignas, a capacidade de ajuste fino das defesas faz diferença nos momentos em que organismo é agredido por invasores ou enfrenta crises internas.
Por isso, no decorrer de milênios, a evolução selecionou sistemas imunológicos primorosos no exercício de suas funções fundamentais: destruir o que é estranho e preservar o que é próprio.
Para o exercício desta última função, para não confundir as próprias células do organismo com eventuais agentes invasores, cada indivíduo traz uma marca particular na membrana de suas células, que serve de salvo-conduto para escapar do exército de defesa. Diante dela, anticorpos e glóbulos brancos passam ao largo. Quando não estão presentes as marcas individuais, como nos tecidos transplantados, por exemplo, o exército ataca para destruir.
Essas marcas que indicam a procedência de cada célula do organismo são conhecidas com o nome de antígenos de histocompatibilidade (de agora em diante: MHC). Na clínica, são eles que testamos para saber quem pode doar órgãos para quem.
Feita essa introdução, vamos passar à questão seguinte: se o interesse reprodutivo dos casais é transmitir aos filhos genes que engendrem bons sistemas imunológicos e se os de melhor qualidade são oriundos de pais geneticamente díspares (MHCs distintos), que critério os animais usam na prática para escolher seus parceiros sexuais? De que forma as diferenças genéticas entre machos e fêmeas são detectadas a ponto de despertar atração sexual?
Dos cinco sentidos que o animal dispõe para identificar diferenças no parceiro ou parceira sexual, o mais importante é o olfato. Seu papel é tão fundamental, que muitos consideram o nariz como órgão sexual acessório. Ou, na imagem de Hans Witzel, diretor do Instituto Karolinska, de Estocolmo: “Temos a capacidade de cheirar genes alheios”.
Duas experiências clássicas mostraram que ratos de laboratório são capazes de identificar diferenças na constituição do sistema imunológico. Em ambas, os pesquisadores expuseram ao olfato do rato observado panos usados nos ninhos em que dormiram ratos portadores de MHCs conhecidos. Depois, repetiam o experimento, colocando o rato observado em contato físico com os próprios ratos que haviam dormido nos ninhos testados. Através do cheiro, o rato observado era capaz de identificar diferenças mínimas de histocompatibilidade, muitas vezes limitadas a uma única alteração em determinado gene.
Em 1998, D. Penn e W. Potts, da Universidade da Flórida, conduziram um experimento com 40 casais de ratos domésticos caçados e levados para o laboratório. Cada casal foi apartado em gaiolas pequenas e observado diariamente para a identificação de fêmeas grávidas. Nas primeiras 24 horas depois do parto, os filhotes eram identificados, marcados sob anestesia, e tinham o MHC catalogado.
Metade dos 134 recém-nascidos foi deixada com suas famílias verdadeiras. A outra metade foi separada dos pais e transferida com cuidado para gaiolas que continham ninhadas de casais estranhos. Com menos de um dia de idade, esses filhotes foram aceitos sem resistência pelos pais adotivos.
Entre três e seis meses depois, período que os ratos levam para amadurecer sexualmente, tanto os filhotes criados pelos pais naturais quanto os adotivos foram libertados em quatro gaiolas de 49m2 para criar condições mais próximas da natural. As gaiolas estavam subdivididas em oito compartimentos iguais. Em cada um deles, foram colocadas 12 fêmeas e 6 machos.
Todas as fêmeas de cada compartimento apresentavam o mesmo MHC, tivessem sido criadas pelos pais verdadeiros ou pelos adotivos. Os machos, não: em cada subdivisão havia 3 machos com o mesmo MHC da família natural da fêmea e 3 com o MHC das famílias adotivas. A intenção do experimento era descobrir se a preferência sexual das fêmeas recaía sobre machos iguais ou díspares geneticamente delas, e se essa escolha sofria influência do convívio familiar desde o primeiro dia de vida.
Os ratos foram observados durante uma até quatro horas por dia, de 5 a 7 dias na semana, por observadores que desconheciam a origem genética de cada animal.
A análise das observações permitiu as conclusões abaixo:
1) As fêmeas criadas pelos pais verdadeiros se acasalavam preferencialmente com machos de outras famílias, portadores de MHCs diferentes dos delas;
2) Já as fêmeas criadas pelos pais adotivos davam preferência a machos nascidos das mesmas famílias do que elas (portanto, portadores de MHC igual ao delas), mas que cresceram separados delas.
Esse estudo confirmou pelo menos três observações feitas na década de 1980, de que ratas sexualmente maduras têm preferência sexual por machos com diferenças genéticas na histocompatibilidade do sistema imunológico (MHC). Reforçou, ainda a hipótese de que a convivência familiar altera essa preferência sexual: a fêmea tende a recusar acesso sexual a machos que cresceram com elas, mesmo que sejam geneticamente díspares.
Embora os mecanismos dessa percepção sensorial não sejam conhecidos com precisão, trabalhos publicados nos últimos vinte anos sugerem que o estímulo químico captado pelos sentidos, nesse caso, seja os odores do corpo. A exposição precoce do animal ao cheiro dos familiares do sexo oposto, gera estímulos olfatórios que vão interferir com as emoções e o comportamento sexual futuro.
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Tal mecanismo de reconhecimento levou vantagem evolutiva nas espécies, porque os indivíduos que o possuíam foram capazes de gerar descendentes com maior diversidade imunológica, portanto mais preparados para enfrentar o meio ambiente.
Na década de 1980, E. Westermack levantou a hipótese de que em seres humanos ocorreria fenômeno similar: a familiaridade desde a infância aboliria o desejo sexual, na vida adulta. Na prática, a comprovação dessa ideia não é fácil: relacionamentos humanos apresentam outra complexidade e não podem ser observados em gaiolas comportamentais.
Em 1995, C. Wederkind e colaboradores da Universidade de Berna, na Suíça, programaram um estudo em seres humanos para testar a hipótese de Westermack. Os autores “tiparam” a histompatibilidade (MHC) de 49 moças e 44 rapazes estudantes da universidade, que não se conheciam uns aos outros. Os rapazes foram obrigados a dormir sozinhos em suas camas, usando a mesma camiseta, numa noite de domingo e no dia seguinte, segunda-feira.
Por rigor científico, a partir da manhã de segunda-feira deveriam guardar a camiseta num saco plástico fechado durante todo o tempo em que estivessem sem ela. Só podiam lavar as mãos ou tomar banho com um sabonete inodoro cedido pelos pesquisadores e ficaram proibidos de usar qualquer perfume, desodorante, fumar, beber álcool, manter relações sexuais e frequentar locais com cheiros fortes ou concentração de pessoas.
Na manhã de terça-feira, seis sacos plásticos etiquetados contendo camisetas usadas foram apresentados a cada mulher: três continham as camisetas de rapazes portadores de genes mais próximos ao dela, e as outras três as pertencentes a homens mais díspares. Junto com as seis camisetas usadas vinha uma do mesmo tecido, nova (camiseta-controle), para a mulher comparar e identificar melhor o cheiro deixado pelo homem. Evidentemente, as mulheres desconheciam completamente os graus de similaridade ou diversidade genética dos homens testados.
As mulheres deviam dar notas de 0 a 10 para cada camiseta, de acordo com a análise de dois critérios: atração sexual e sensação agradável àquele odor. Zero, para os cheiros extremamente desagradáveis e para os que provocassem repulsa sexual, 5 para os neutros, e 10 para os muito agradáveis e para os causadores de clara atração sexual.
O tratamento estatístico dos resultados mostrou que:
1) As avaliações referentes à atração sexual foram concordantes com as que provocaram sensação agradável nas mulheres;
2) As mulheres deram notas mais altas para os homens testados que apresentavam maior disparidade genética em relação a elas, confirmando os resultados obtidos com ratos;
3) Nas mulheres que estavam tomando pílula anticoncepcional, a relação se inverteu: elas preferiram o odor dos homens com maior identidade genética;
4) Estimuladas a comparar o odor da camiseta testada com a lembrança do cheiro de namorados atuais ou antigos, as mulheres identificaram-no nas camisetas de homens com MHCs díspares, com o dobro da frequência do que nas de MHCs similares.
Esses achados reforçaram a impressão de que o cheiro do corpo humano também é dependente da histocompatibilidade do sistema imunológico e que desempenha papel importante na escolha da parceria sexual. Como a pílula anticoncepcional cria artificialmente na mulher um balanço hormonal que se assemelha à gravidez, é provável que subverta a ordem natural: grávidas preferem odores de homens mais compatíveis e protetores, como o pai ou os irmãos.
Em 1997, C. Ober e colaboradores de diversas universidades americanas publicaram um estudo conduzido em três comunidades huteritas que proíbem a seus membros a prática de qualquer forma de contracepção, por razões religiosas.
Essas comunidades huteritas descendem de um grupo de protestantes batistas que se estabeleceu nos Alpes do Tirol, em 1528. Por causa de perseguições religiosas, ao redor de 1870, cerca de 400 descendentes desses huteritas emigraram para os Estados Unidos e se instalaram em três fazendas comunitárias, onde é hoje o estado de Dakota do Sul. Essa população original deixou mais de 35 mil descendentes, ainda fiéis a seus princípios religiosos, distribuídos em cerca de 350 colônias, espalhadas em diversos estados americanos e canadenses.
Os huteritas foram escolhidos pelos autores por viverem em comunidades fechadas, constituírem famílias numerosas e apresentarem variabilidade genética limitada: nos testes de histocompatibilidade, seus sistemas imunológicos se distribuem em apenas cinco grandes grupos.
O casamento entre eles acontece ao redor dos 20 anos de idade, quase sempre entre membros de comunidades diferentes. Ao casar, a mulher muda para a comunidade do marido, e o divórcio é terminantemente proibido. Dessa maneira, os homens residentes numa comunidade descendem de uma mesma linhagem enquanto as mulheres pertencem a outras. Casamentos entre primos são desencorajados e raros.
Os autores testaram a histocompatibilidade de 411 casais pertencentes a três comunidades residentes em Dakota do Sul. A análise mostrou que a diversidade entre a histocompatibilidade dos esposos foi bem maior do que a esperada estatisticamente. Os huteritas procuram evitar casamentos com pessoas portadoras de MHCs semelhantes, confirmando a hipótese de Westermack de que seres humanos são capazes de discriminar indivíduos com base nos genes presentes nas regiões do genoma que controlam a compatibilidade do sistema imunológico.
Existem evidências de que a histocompatibilidade influencia não apenas a escolha da parceria, mas até a seleção que a mãe faz do embrião depois de concebido:
1) Na fertilização in vitro, casais que não conseguem sucesso depois de duas ou três tentativas apresentam estatisticamente MHCs mais similares do que os casais em que a fecundação é obtida logo na primeira vez. O achado sugere que pais portadores de MHCs mais próximos levem desvantagem para fecundar e manter suas mulheres grávidas;
2) Na população huterita citada acima, famílias em que os filhos nasceram depois de intervalos mais longos são frequentemente constituídas por casais com maior proximidade genética. A observação faz supor que nesses casos seja maior a frequência de abortamentos espontâneos, ocorridos silenciosamente no início da gravidez;
3) Em 1974, R. May publicou na revista “Nature” um estudo sobre a histocompatibilidade de casais em que a mulher apresentava abortos espontâneos de repetição. Os exames mostraram que o casais apresentavam MHCs mais similares do que o esperado estatisticamente. Trabalhos posteriores mostraram que bebês recém-nascidos desses casais tinham peso corpóreo mais baixo;
4) Em ratos, há evidências de que a fêmea é capaz de abortar o embrião concebido com macho de histocompatibilidade próxima, ao sentir o cheiro de outro macho portador de MHC díspar. É como se natureza lhe ordenasse a troca de paternidade.
Esses estudos sugerem que existam mecanismos decisórios associados à fisiologia da concepção para ajudar a fêmea a avaliar se o investimento a ser alocado naquela gravidez inicial compensa o risco de ter um filho com patrimônio genético desfavorável para a sobrevivência no mundo exterior. Evidentemente, tais mecanismos são tão inconscientes quanto a decisão de rejeitar um transplante de órgão.
Entre todos os primatas, seres humanos são os que mais possuem glândulas produtoras de odores. Embora nosso olfato seja capaz de discernir talvez 10 mil ou mais cheiros diferentes, é entre 10 e 20 vezes menos sensível do que o de um cachorro, e menos ainda do que o de um rato.
As terminações nervosas que captam o cheiro estão ancoradas na mucosa nasal. Ali, são capazes de reconhecer especificamente o odor de cada tipo de molécula. Quando sentimos o cheiro de uma laranja, por exemplo, na verdade diversas terminações foram estimuladas pelas diferentes substâncias liberadas pela casca da fruta e conduzidas para o cérebro que vai reunir e analisar todos os “bits” de informação, compará-los com informações prévias armazenadas na memória e identificar o cheiro com tal precisão que saberemos se ele vem da fruta verde ou madura, de uma bala ou de um xampu com essência de laranja.
Esses neurônios receptores de sinais olfatórios presentes na mucosa nasal enviam terminações que convergem para uma estrutura situada mais internamente, chamada bulbo olfatório. Os estímulos que chegam ao bulbo são organizados e conduzidos por circuitos específicos de neurônios para diversos centros cerebrais, entre os quais se encontra o sistema límbico, uma das áreas mais importantes no processamento das emoções, sexualidade e desejo. Essa conexão entre o bulbo olfatório e o sistema límbico constitui uma via muito mais rápida de transmissão do estímulo do que a percorrida pelas informações visuais ou auditivas.
As conexões diretas entre esses receptores e os centros que integram impulsos emocionais exercem profunda influência nos relacionamentos humanos, desde que os bebês encontram pela primeira vez o mamilo materno através do cheiro. Como diz Susan Schiffman, da Universidade Duke: “um casal pode sobreviver a toda sorte de diferenças, mas quando um deixa de gostar do cheiro do outro o relacionamento está arruinado”.
* Nota: As informações e sugestões contidas neste artigo têm caráter meramente informativo. Elas não substituem o aconselhamento e acompanhamentos de médicos, nutricionistas, psicólogos, profissionais de educação física e outros especialistas.
Fonte: Drauzio Varella
Autor: Drauzio Varella